sábado, 11 de agosto de 2007

Ciência construída sobre a dor da natureza

DIA 11.08.2007 - JORNAL O GLOBO - Página 3 - PROSA E VERSO

Filósofa Sônia T. Felipe mostra que progresso à custa do sacrifício de animais não é aceitável nem verdadeiro

Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas
, de Sônia T. Felipe. Editora da UFSC, 351 páginas. R$ 40

Regina Schöpke

Como diz Vinícius de Moraes: "a vida é a arte dos encontros". Alguns são bons, outros nem tanto; mas certamente não há vida ou ser que não se defina, como já dizia Espinosa, pela sua capacidade de afetar e de ser afetado por outros seres. Nesse sentido, independentemente do valor arbitrário que se atribua à vida (porque, para a natureza, não existem seres superiores ou inferiores, mas simplesmente seres), a verdade é que todos os existentes estão em relação uns com os outros, estão perpetuamente se agenciando. Um bom encontro, nesse caso, é aquele que aumenta o nosso poder de ação, é aquele que nos torna mais fortes; um mau encontro é aquele que decompõe nossas forças, que diminui nossa capacidade de expansão e de vida. Nessa ética profunda de Espinosa, qualquer vida é soberana e a escravidão não pode ser pensada senão como um mau encontro, como um ato de tirania que impede um ser de simplesmente ser, de viver, de agir, de ser senhor de si mesmo e de suas ações.

Humanidade sofre de sonolência moral e ética

De fato, é comum argumentar que é "natural" preocupar-se mais com sua própria vida do que com a dos outros, mas os animais, por exemplo, possuem um censor natural que os impede de ir além de suas necessidades básicas, ou seja, eles não conhecem a ambição e nem a tirania, diferentemente do homem, que é capaz de sacrificar todas as espécies (inclusive a sua própria) se isso puder lhe trazer algum benefício. Digam o que disserem, justifiquem como quiserem (que somos "superiores", que somos "filhos de Deus e que a natureza foi criada para nos servir"), é por tirania, e não por um direito natural, que os homens escravizam as outras espécies e os próprios homens.

Talvez Nietzsche esteja certo em dizer que a natureza é amoral (no sentido de que ela desconhece as idéias de bem e de mal), mas nós somos imorais quando tiranizamos a tudo e a todos. É claro que ninguém é capaz de defender publicamente atirania, a escravidão, a exploração humana, embora muitos se beneficiem com isso, mas quando a questão é a relação do homem com as outras espécies, a exploração é clara e inescrupulosa, já que quase ninguém se sente indignado com o fato dos animais (que muitos, aliás, dizem amar) serem completamente destituídos de qualquer direito, ultrajados em sua liberdade e expostos a todo tipo de humilhação e sofrimento.

Quando, além de todos os abusos cometidos (que incluem milhões de animais abatidos todos os dias para nossa alimentação, muito mais pelo "prazer" da carne do que por uma necessidade real, animais usados para diversão e mortos em práticas "esportivas" ou vendidos em feiras e pet shops), ainda temos que ouvir alguns cientistas alegarem que a experimentação animal é necessária para o nosso "bem-estar e progresso", não podemos deixar de concluir que nossa espécie realmente sofre de uma profunda sonolência moral e ética. Não estamos questionando o valor das ciências (isso seria uma insanidade), mas é preciso refletir sobre um tipo de ciência que acredita que a busca do conhecimento não deve ter limites, que se pode dispor da natureza inteira e mesmo do próprio homem quando o assunto é o "saber".

Sem dúvida, além do aspecto duvidoso e perigoso de muitas pesquisas (como, por exemplo, a "bricolagem biológica" que consiste em recortar-e-colar genes como se fosse algo seguro e controlável), há a questão fundamental sobre o direito que temos de utilizar os animais em experimentos científicos, adoecêlos, torturá-los, desfigurálos, matá-los - enfim, tratá-los como "coisas", como objetos.

Como, afinal, conciliar a nossa razão superior e refinada com tais barbaridades? Como fecharos olhos para essa tirania? Eis uma questão que o livro da filósofa Sônia T. Felipe, "Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas", pode nos ajudar a pensar.

Professora e pesquisadora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, Sônia dedica-se, há anos, à reflexão sobre os argumentos éticos em defesa dos animais. Na esteira de filósofos como Peter Singer e Tom Regan (conhecidos por sua luta contra a escravidão animal), ela empreende uma cruzada contra os preconceitos que impedem a extensão da esfera da moralidade também aos animais.

Partindo do princípio (confirmado pelos cientistas mais conscientes, como vemos em seu livro), de que a maior parte dos experimentos com animais não produz nenhum avanço científico real (seja porque somos fisiologicamente diferentes deles, seja porque parte desses experimentos serve aos frívolos interesses das indústrias de cosméticos, seja porque a maior parte da Humanidade é alijada dos "benefícios" da ciência), a filósofa brasileira une sua voz à dos abolicionistas, lembrando que também no passado parecia utópico o discurso contra a escravidão humana.

Argumentos embasados em quatro perspectivas distintas

Ao mecanicismo de Descartes - para quem o animal é uma máquina sem sentimentos, sem emoções - Sônia Felipe contrapõe as idéias de Darwin e apresenta todas as evidências da dor, do sofrimento e da inteligência dos animais, revelando o número assustador daqueles que são usados em experimentações no mundo (cerca de 500 milhões por ano). Eis porque, para ela, é preciso de uma vez por todas proclamar a abolição dessa outra escravidão, que coloca em dúvida nossa própria superioridade moral. Buscando em quatro perspectivas diferentes (a religião, a ciência, a filosofia moderna e contemporânea e a tradição jurídica) argumentos contrários à experimentação animal, a autora vai tecendo sua própria visão de mundo, na qual o respeito não é um ato de complacência e piedade, mas conseqüência de uma elevação moral e ética do homem.

Em outras palavras, o discurso do "progresso" à custa do sacrifício e do sofrimento de outras espécies não é nem aceitável e nem verdadeiro. Podemosfechar os olhos para isso, mas nada altera o fato de que estamos "matando os nossos chineses".

Com isso, nos referimos a uma interessante questão levantada pelo escritor Chateaubriand, a propósito da consciência humana. Ele pergunta: se pudéssemos, com a simples formulação de um desejo, provocar a morte de um homem na China e herdar toda a sua fortuna (sabendo que jamais seríamos descobertos), faríamos isso sem hesitar? Ou seja: agimos eticamente por medo de alguma punição ou temos repugnância por todo ato imoral, covarde e tirânico, mesmo que ele possa porventura nos beneficiar? A primeira opção faz de nós hipócritas; a segunda, faz de nós seres verdadeiramente éticos.

Atos de tirania derrubam clamor por justiça

Não há justificativa para a escravidão humana ou animal, apenas a tirania, o abuso de poder, o desrespeito. Como, afinal, ignorar a brutalidade inenarrável que é manter como prisioneiros milhões de macacos, coelhos, cães, gatos para serem todos os dias torturados em laboratórios? O argumento de que o animal é uma engrenagem movida por instintos mecânicos há muito já caiu por terra, embora continuemos fingindo (seja por preguiça mental, indiferença, comodidade ou interesse econômico) que não existe mal algum em tratá-los como uma propriedade nossa.

Enfim, em nome do que o homem se arroga o direito de escravizar todos os seres do planeta, enquanto defende, para si, valores como a liberdade e o direito à vida? Será que o homem não consegue compreender que seus argumentos em favor da vida humana, seu clamor por justiça e pela igualdade de direitos jamais se sustentarão enquanto ele próprio não deixar de ser um pequeno tirano (na sua casa, no seu trabalho, com os outros seres)? Resumindo: o homem não se vê como parte da natureza e continua agindo contra si mesmo quando insiste em atacá-la, em destruir seu equilíbrio. Mas a vida é soberana e sempre continua, com ou sem ele. A felicidade que se constrói sobre a dor e os gemidos da natureza (ou de outros seres humanos) é criminosa e ilusória.

REGINA SCHÖPKE é filósofa, medievalista e autora do livro "Por uma filosofia da diferença"

Nenhum comentário: